Assesoria de Comunicação, 13.11.2024
Geraldo Dutra de Andrade Neto
Juiz Secretário de Relações Internacionais da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Secretário Executivo da União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa (UIJLP)
Em setembro, tive a oportunidade de palestrar para juízes moçambicanos, em Maputo, sobre o sistema eleitoral brasileiro, a convite da Associação Moçambicana de Juízes (AMJ), em evento conjunto com a União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa (UIJLP).
Com destaque para o processo histórico que resultou no nosso sistema eleitoral, começamos pela primeira lei eleitoral, promulgada em 19 de agosto de 1822, antes mesmo da independência do Brasil, editada por D. Pedro I e que marcou o início de um longo caminho de transformações e desafios.
Naqueles primórdios, o voto era censitário e excluía pessoas brancas pobres, pardos e negros livres e escravizados. As eleições eram indiretas, muitas vezes com três ou quatro camadas, garantindo a vitória daqueles que detinham o poder. O voto de cabresto prevalecia, e as eleições não contavam com a intervenção dos juízes.
Esse estado de coisas prevaleceu durante mais de 50 anos, até o advento da Lei Saraiva, de 1881, que representou um avanço significativo ao suprimir as eleições indiretas e transferir muitas funções do sistema eleitoral à magistratura. Carvalho de Mendonça, juiz e jurista da época, destacou a importância da magistratura:
“À magistratura confiou a Lei nº 3.029 importantíssimas funções. Aos seus membros cabe compenetrar-se do espírito da lei, inspirar-se na pura Justiça e dar suas decisões de acordo com as suas consciências. Os juízes não se deixem cegar pela mal entendida política, que hoje infelizmente tudo invade como uma praga, arruinando os homens e as instituições. O papel do juiz é mais importante que o de agente ou cabo eleitoral.”
Com a proclamação da República, em 1889, houve um retrocesso: o Governo Provisório, temendo perder as eleições para os monarquistas, retirou os juízes do sistema eleitoral, e a realização das eleições foi devolvida à polícia e a outros funcionários dependentes do poder vigente. Instalou-se, então, a política “café com leite”.
Com o decorrer dos anos, a política dos governadores e o coronelismo levaram à falência do sistema eleitoral, o que culminou na Revolução de 1930. Assis Brasil, nos anos 20, descreveu a incerteza que permeava o processo eleitoral, desde o alistamento até a apuração dos votos:
“Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor; ninguém tem certeza de votar, se por ventura for alistado; ninguém tem certeza de que lhe contem o voto, se porventura votou; ninguém tem certeza de que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado na apuração da apuração, no chamado terceiro escrutínio, que é arbitrária e escaradamente exercido pelo déspota substantivo, ou pelos déspotas adjetivos, conforme o caso for da representação nacional ou das locais.”
A implantação da Justiça Eleitoral, em 1932, e o voto das mulheres representaram grandes avanços. No entanto, o Brasil enfrentou mais uma ditadura, com um breve intervalo de eleições livres entre 1946 e 1963, seguido por outra ditadura em 1964.
O retorno à democracia, com a promulgação da Constituição de 1988, fortaleceu o Poder Judiciário e o sistema eleitoral, colocando todas as etapas das eleições nas mãos da Justiça Eleitoral. Em 1986, o Brasil inovou com o recadastramento eleitoral em meio magnético e, em 1996, iniciou a implantação da urna eletrônica, consolidada em 2000 com a primeira votação totalmente eletrônica.
A urna eletrônica trouxe uma série de benefícios para o sistema eleitoral brasileiro. Primeiramente, ela garantiu maior segurança e transparência no processo de votação e apuração dos votos. Com a urna eletrônica, o risco de fraudes e manipulações foi drasticamente reduzido, uma vez que o sistema é altamente seguro e possibilita a fiscalização constante. Além disso, a apuração dos votos se tornou muito mais rápida e eficiente, permitindo que os resultados das eleições sejam conhecidos poucas horas após o encerramento da votação.
Outro aspecto importante é a inclusão e acessibilidade proporcionada pela urna eletrônica. O sistema foi desenvolvido para ser acessível a todos os eleitores, incluindo pessoas com deficiência. Isso garantiu que mais cidadãos pudessem exercer seu direito ao voto de maneira independente e segura.
Hoje, a Justiça Eleitoral no Brasil é composta por Tribunais em várias instâncias, com juízes desempenhando papéis cruciais. Nosso sistema eleitoral evoluiu para enfrentar os grandes problemas da história do Brasil, impactando positivamente a nação e a democracia.
A cultura de um país não deve ser vista como um obstáculo insuperável para atingir a integridade do sistema eleitoral. Pequenas alterações nas instituições políticas podem ter efeitos positivos incrementais para o desenvolvimento econômico e social, como demonstrado por Daron Acemoglu e James A. Robinson em “Por que as Nações Fracassam”. Moçambique não precisará de 170 anos para resolver o sistema eleitoral, dado que no mundo atual a circulação de ideias é instantânea. Poderá adaptar soluções de outros países e melhorar, paulatinamente, seu sistema eleitoral.
Cabe a observação Ortega y Gasset, em “La rebelión de las masas”, que destacou a importância do processo eleitoral para a saúde das democracias:
“A saúde das democracias, quaisquer que sejam seu tipo e grau, depende de um mínimo detalhe técnico: o processo eleitoral. Tudo o mais é secundário. Se o regime das eleições é acertado, se se ajusta à realidade, tudo vai bem; se não, ainda que o resto marche otimamente, tudo vai mal.”
Moçambique vive hoje um momento de grande instabilidade política e social, que tem estreita relação com a integridade de seu sistema eleitoral. Eleições foram realizadas, mas surgem dúvidas e questionamentos acerca do funcionamento do sistema eleitoral e dos resultados.
Avançar, portanto, com alterações legislativas para aperfeiçoamento do sistema eleitoral parece ser uma das medidas necessárias.
Com um olhar de fora, não de um estrangeiro qualquer, mas de um primo próximo que vive um pouco distante, diria que a principal questão em relação às eleições em Moçambique hoje é a integridade do escrutínio. Também é necessário melhorar o cadastro eleitoral, a inviolabilidade do voto, as cadeias de custódia, além de implementar um sistema de fiscalização/administração das eleições com juízes em primeira instância – que podem ser os mesmos juízes de Direito, com mandatos rotativos para exercer a jurisdição eleitoral.
Manter o Tribunal Constitucional como responsável por decidir originariamente todas as ações eleitorais não só polariza o tribunal como torna possível sua captura pelo poder político, para se tornar um instrumento do poder vigente.
Talvez uma boa solução para Moçambique seja a de um Tribunal exclusivamente Eleitoral, também com juízes rotativos, como o TSE brasileiro. A urna eletrônica seria uma ótima conquista, mas requer um nível de organização da Justiça Eleitoral que deve ser criado e implementado previamente.
Apesar de suas vantagens evidentes, a urna eletrônica tem uma característica intrínseca: só ganhará eleições quem tiver mais votos, o que pode ser visto como um defeito por aqueles que se apegam ao poder, mas é uma virtude para quem preza a democracia.
Todos podemos fazer a diferença e contribuir para um sistema eleitoral mais justo e democrático. É uma luta constante, porém, com determinação e pequenas mudanças, podemos alcançar grandes avanços.